Por: CARLOS ROSA MOREIRA - 04/03/2025 13:59:39

COISAS PEQUENAS

Certa vez, disse a um grupo de amigos que o mundo havia piorado.

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Todos discordaram. Um deles exaltou a anestesia no tratamento dos dentes: “antigamente devia ser uma terrível tortura!”, outro elogiou o progresso tecnológico, e o terceiro disse que até os pobres vivem melhor hoje do que ontem, pois, no tempo dele, pobre

...Isso nada mais é do que aquele raciocí­nio imediato após ouvirmos algo que nos parece estranho. A resposta vem pronta e parece lógica e correta. Acontece que eu não falava do progresso dos homens, falava deste mundo mesmo, esta terra em que pisamos, este mundo do qual comemos e bebemos desde o mais longínquo antepassado da espécie. Este mundo que nos foi entregue com florestas verdes, ar cristalino e águas límpidas. Este mundo piora muito, inexoravelmente. E não pode ser de outro jeito, pois é sobre ele que amamos, nos multiplicamos, sofremos e dele retiramos todas as nossas necessidades. E fui pensar nessa piora do mundo por causa de uma coisa pequena, um pedacinho do mundo que existe diante da minha janela. Nesse pedacinho de mundo havia mata e uma gentil casinha. Na mata existiam duas jaqueiras, um pé de limão-galego, umas moitas de capim-colonião, um bambuzal bonito a se lamentar com o vento, uns pés de aroeira e vários arbustos que se misturavam com uma galharia danada.

Além disso, havia os pássaros que brincavam no terreno. Posso garantir que por lá passaram sabiás, bem-te-vis, pombos, rolinhas, sanhaços, pardais, canários-da-terra, biquinhos-de-lacre, periquitos, maritacas e um ou outro pássaro estrangeiro fugido de alguma gaiola, que no terreno buscava pouso e abrigo. Acho que vi um canário-belga, certa vez.

Tinha a fauna terrestre também, composta de gambás, ratos e micos, e dos gatos que perambulavam silenciosos como pequenas onças.

Notava-se algo de caótico naquela floresta urbana embaixo da minha janela. Um dia foi floresta virgem, arrasada e abandonada pelos homens, transformada em terreno árido. O caos vegetal era a tentativa do mundo de recuperar o que lhe foi tirado, desbastado, cortado e deixado para lá.

Então o tempo passou, vieram as chuvas, os insetos, os ventos e os pássaros com as sementes, e a terra vilipendiada recuperou-se. E sem preconceitos, pois ali viviam em harmonia com a flora nativa os estrangeiros limão-galego, o capim-colonião e as “nossas” queridas jaqueiras. Os olhos repousavam no emaranhado verde e se distraí­am com seus habitantes.

Separada do terreno por um muro com um portão, havia a casinha. Era casinha antiga, do tempo em que ainda não existiam edifí­cios na rua. Tinha telhas francesas, paredes pintadas de branco, janelas azuis e uma treliça de madeira na parede dos fundos, sobre a qual subiu uma hera que ninguém podava. No quintal floresciam hibiscos e rosas e, num canteiro colado ao muro, hortaliças se misturavam ao mato comum. Um sapotizeiro fazia a alegria dos passarinhos e dos morcegos. Vez ou outra aparecia uma senhora de idade para mexer na horta. Um dia a senhora desapareceu e fecharam a casa. Depois uns homens desembarcaram de um caminhão, entraram no terreno embaixo da minha janela, derrubaram as jaqueiras, cortaram o pé de limão-galego, as aroeiras, transformaram o bambuzal num tufo de cotocos e deixaram a terra nua. Sobre ela construí­ram galpões com cobertura metálica. Fizeram um estacionamento. Acabaram-se os trinados, mas há o barulho de motor, buzinas e às vezes dispara um alarme gritante, cujo som estridente permanece nos ouvidos mesmo depois de ter sido desligado. Não tardou para atacarem a casinha. Cortaram o sapotizeiro, os hibiscos e as rosas, arrancaram a hera e a treliça e cimentaram o quintal. Onde existiu a horta fizeram uma cobertura de vidro e metal. A casinha foi pintada de um amarelo fulgurante. Quando bate o sol, parece que as paredes gritam.

De vez em quando eu chego à janela, mas olho para o céu. Meus olhos se ressentem da reverberação da luz e do calor sobre o metal e o cimento. Penso que minha vida também é composta de pequenas coisas, entre elas olhar pela janela. Recordo o terreno que se foi, levando consigo suas criaturas. E confabulo num humilde exercí­cio filosófico que é isso mesmo, o destino do homem é transformar este mundo, e cada geração futura conhecerá apenas o mundo que lhes dão e acharão bom, e se sentirão feliz.




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